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Desta Arte que me Fala - 2ª viagem | Em cada sentir, um inadaptado

Atualizado: 3 de fev. de 2020

Há alguns meses atrás, enquanto sentada numa esplanada a fazer tempo para um compromisso, aconteceu uma mulher vir ter comigo e pedir-me ajuda para comprar uma garrafa de leite e algo para comer, para ela e para o filho pequenino. Pediu-me várias vezes desculpa. Enquanto vinha e não vinha o pedido, percebi-lhe uma necessidade tal de falar que quando dei por mim já ela estava sentada ao meu lado. Partilhou comigo que vivia das limpezas que fazia e o tom de felicidade e orgulho que dela emanava quando falava sobre isto, enquanto sentia que era o melhor que sabia fazer na vida, não restava dúvidas de que servir o mundo desta forma era a sua missão. Ganhava pouquíssimo ao dia. Com sorte conseguia ir arranjando outros trabalhos na área durante o mês. Outras vezes a sorte não era tanta. Não conseguia ter casa própria e a violência que sofria por parte do companheiro também não deixava alternativa. Estava por isso temporariamente a morar com o filho na casa de uma amiga que lhe ia ajudando com o que conseguia. Vivia em modo sobrevivência todos os dias, provavelmente há anos. Sentia-se sozinha. Entre lágrimas confessou-me que tentou morrer. Falamos mais um pouco. Voltou a pedir desculpa por diversas vezes, agradeceu-me com um sorriso, pediu-me um abraço, pegou no saco com o leite para o filho e foi-se embora.


Quando o desenho falou (ver em baixo), esta lembrança surgiu.


Entre tantas premissas que se poderiam despertar perante esta situação, foco de forma enfática e especial na coragem desta mulher – aliada a uma necessidade emergente – de chorar e falar com um estranho sobre dores tão profundas que lhe moldavam a existência. Quantos de nós não vivemos nessa urgência de nos libertarmos de um peso no peito, mas que não conseguimos sequer arranjar as palavras necessárias, para que assim os outros consigam calçar os sapatos da nossa vida e percebam o nosso caminhar? A sensação de se estar sozinho com o seu sofrimento e não haver compreensão por parte dos outros torna-se doloroso, mais doloroso ainda do que não conseguirmos arranjar as palavras certas para nos darmos a conhecer. E deste não falar, ou falar-se do que não se consegue ver ou tocar – este conceito ainda tão abstracto e imaterial para a realidade do nosso dia-a-dia – mas que ainda assim é sentido (claramente sentido!), faz cair em cima destes inadaptados o carmo e a trindade, numa espiral de incompreensão implícita que os amarra a um emaranhado de rótulos esotéricos e vestígios de loucura. A incompreensão dos outros sobre eles é capaz de os magoar tanto a ponto de tomarem como solução instintiva o seu isolamento do resto mundo.


Há um mundo de inadaptados em sofrimento. Carregam na alma a dor de não se sentirem escutados nem compreendidos, ou vivem da real sensação de que “não são de cá”. Há uma tendência para mergulhar em sensações tão maravilhosas como a sensação de uma forte saudade de “casa” (seja o que for e onde for essa “casa” – na verdade, nem eles sabem. Mas sentem). Esta realidade, tão normal para uns, peca pela quantidade de realidades que existem, tantas quanto o número de seres humanos na Terra (e com eles o que a sua bagagem define o que é a realidade). Esta realidade especial para uns, peca para os outros tantos, não pela abrangência da capacidade ou incapacidade da sua compreensão das realidades diferentes da sua, mas em concreto pela sua fraca capacidade de aceitação pela diferença, pelo medo do desconhecido, pela falta de controlo por algo novo que o leva a sair do seu centro. No fundo, peca aquele que não quer sentir em si mesmo o que é ser-se inadaptado, que mais não é do que alguém que carrega uma leveza tão grande consigo, que o torna tão fascinante quanto estapafúrdio.


A falta de humanidade que brota pelo contacto com a diferença e com o desconhecido, realça o menosprezo vidrado nos olhos de quem não os entende. Não sabem que, para um inadaptado, não ser olhado, sufoca-o. Não ser escutado, sufoca-o. Não se conseguir partilhar, sufoca-o. Não ser tocado, sufoca-o. E todos os dias o inadaptado vai negando cada vez mais essa vontade. Mas todos os dias essa vontade de conexão também aumenta exponencialmente. No entanto silencia-se, porque não se sabe como ligar. Arranja no isolamento a armadura ideal que, com o tempo, sufoca-o e que, sem precisar de mais tempo, o mata. Literalmente. O peso do sofrimento sem causa ou dor de existir consome a leveza de um inadaptado - que espera encontrar em si a capacidade de se fazer entender – e é tão comum ver nascer uma indomável vontade de desaparecer, num acto de sacrifício para com a vida, de forma a voltar a sentir essa leveza inata.


A morte continua a ser tema tabu na sociedade. Não me alongarei por agora. Mas é urgente perceber: o inadaptado que não encontra o seu instrumento expressivo arrasta consigo uma dor insuportável de existir. Começa a ausentar-se da vida aos poucos, por uma solidão que sem querer foi construída pela sua incapacidade de se dar exactamente como é, de ser abraçado como gostaria de ser. Anula-se porque lhe dói menos, enquanto a liberdade de se ser o que se é, com a qual nasceu, vai-se fragmentando ao longo do tempo. E de que serve uma coisa feita em cacos?


Deixa de ser leviano

o acto de se olhar para o céu.


Vivemos todos neste limiar de loucura, qualquer um de nós, quando o mestre da nossa vida é a sensação. As palavras podem tentar trazer o significado concreto à vida, a voz e o som podem tentar perpetuar a vida dos sentidos, a imagem pode tentar transportar-nos em dimensões visuais. E ainda assim, o inadaptado sente que se expressou pela metade. Mas sabe, só ele próprio o sente, que alguém tão próximo dele algum dia o escutará, e a coragem que teve pelas tentativas de expressar a sua essência levarão ao culminar da sua transformação.


Catarina Marques


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